sexta-feira, 8 de dezembro de 2006

E continua...

Excertos de «ELEMENTOS PARA UMA CRÍTICA CIENTÍFICA DA TERMINOLOGIA LINGUÍSTICA PARA OS ENSINOS BÁSICO E SECUNDÁRIO (TLEBS)»
de João Manuel de Andrade Peres
Linguista, professor catedrático
da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
(...)
Não obstante o que afirmei na secção anterior acerca do papel dos linguistas na avaliação de uma terminologia linguística, é com pena que verifico que, entre as vozes críticas da TLEBS que nos últimos meses surgiram nos jornais e na televisão, estiveram muito poucos linguistas (tanto quanto me apercebi, apenas Jorge Morais Barbosa, catedrático da Universidade de Coimbra). Este facto perturba- me, pois dele resulta a imagem ilusória de que estamos todos a cerrar fileiras em defesa da Terminologia. Sei que isto não é verdade e reputo importante que o país o saiba. Por isso avanço agora com esta posição pública, apesar de me ser penoso pôr em causa o trabalho de colegas e possivelmente magoá- los, de tal modo que por muito tempo protelei a iniciativa e pelo menos três vezes contactei uma das autoras da TLEBS, responsável por algumas das partes que considero mais problemáticas. A primeira reacção desta Colega de departamento foi de surpresa e alguma displicência, mas, num segundo momento, informou-me de que se previa uma revisão para Setembro passado e alertou-me para que uma intervenção pública da minha parte poderia pôr em causa o trabalho de muitos anos de linguistas em prol do ensino da gramática. Setembro passou, estamos em Dezembro e nada vi ou me foi dito até hoje que justifique a manutenção do silêncio.
À circunstância que acabo de expor acresce o facto de o público estar a receber uma imagem dos linguistas que quase faz deles um bando de incompetentes malfeitores que teria por objectivo torturar professores e alunos e pôr de rastos o ensino do português.
Não conheço nenhum linguista a quem assente bem esta (minha) descrição hiperbólica, mas entendo perfeitamente que alguns de nós sejam acusados de ter agido de forma pouco profissional.
(...)
Tenho plena consciência de que, ao intervir, poderei afectar o prestígio de alguns linguistas e reduzir a margem de influência que tenham conquistado. Porém, considero de muito maior monta o prejuízo que esses mesmos linguistas estão, com a TLEBS, a infligir a muitos milhares de crianças e jovens deste país e a alguns milhares de docentes.
Depois de muito instado por antigos alunos que hoje são professores de português, opto, como considero ser de boa norma, pelo mal menor e procedo como quem cumpre um dever cívico. Faço-o na esperança de que mais vozes se ergam, levando o Governo a tomar consciência da gravidade da situação, da qual se constituiu responsável último, ao ter-lhe dado força de lei, não obstante o processo ter sido herdado, praticamente concluído, de governos anteriores (o que é de rigor afirmar, como aliás tem sido feito, mesmo por uma voz insuspeita de preferência política pela actual governação, como é a de Graça Moura).
(...)
A meu ver, a TLEBS não é um objecto inaceitável pelo facto de ser inovadora nos termos (ainda que as inovações possam ser discutíveis), nem por nela se pretender assumir uma postura científica, nem por conter termos de estrutura complexa e difícil de apreender. Não, a TLEBS deve ser rejeitada, antes de mais, porque cientificamente não merece crédito (quod est demonstrandum, obviamente). Adicionalmente, e dado o fim a que se destina a Terminologia, não é também despiciendo o facto de que, mesmo que ela tivesse mérito científico, se tornaria um objecto inútil por não ser servida por materiais de consulta sólidos, nomeadamente uma boa gramática do português de perspectiva inovadora, que não existe. Acresce ainda que a TLEBS é chocante pela sua insensatez no que respeita a extensão, pelo carácter abrupto (direi mesmo brutal) do seu modo de introdução (por oposição a um processo eventualmente faseado ao longo de anos) e pela insensibilidade que revela à importância da coesão inter-geracional, criando rupturas absolutamente inúteis.
Antes de formular as minhas críticas, respondo a uma pergunta que pode surgir no espírito de quem me lê: mas, então, a TLEBS não está já avaliada e creditada cientificamente, uma vez que a sua base de dados de definições foi elaborada exclusivamente por docentes universitários? Lamento responder que não está. Pelo menos por três razões, as duas primeiras das quais espero que fiquem evidenciadas no presente texto: em primeiro lugar, alguns dos autores não são, de modo algum, as pessoas mais qualificadas do país nas suas áreas e estas não foram chamadas a dar o seu contributo crítico sobre o seu trabalho; em segundo lugar, alguns dos autores claramente excederam os limites das suas competências específicas, trabalhando sobre questões de que pouco ou nada entendem; finalmente, por mais elevada que pudesse ser a qualidade do trabalho realizado separadamente por oito entidades distintas (nuns casos, indivíduos, noutros grupos), só por milagre a conjugação dessas peças autónomas no todo da TLEBS poderia ter resultado em algo de coeso e consistente, quando nem uma única vez essas diferentes entidades trabalharam em conjunto para articular a nova terminologia para o ensino do português. Eu sei que é inacreditável esta última afirmação, mas oiça-se o cândido depoimento de uma das autoras, que se pode encontrar no sítio oficial da TLEBS, na secção de “perguntas mais frequentes”: “Na TLEBS há duas definições para Adjectivo, como para Advérbio, Nome e Verbo. Esta duplicação resulta de cada domínio ter sido tratado por um diferente autor e nunca ter sido feito um cruzamento dos dados.” Lê-se e não se acredita. Como é possível que, em tais condições, tenha sido assumida a responsabilidade de fazer chegar a Terminologia ao Diário da República e que ela esteja hoje a ser imposta ao país inteiro? Alguém terá de responder por tamanho absurdo.

(...)
A concluir as minhas notas críticas e avaliativas, lamento dizer que os comentários que aqui expendi (com a ironia que, para mim, quadra bem com tudo o que é tragicómico) mais não representam do que – acentuo bem – uma pálida amostra do muito mais que há para dizer de negativo acerca da TLEBS, nuns casos por manifesta insuficiência ou incorrecção da informação dada, noutros por uma estreita visão do objectivo a atingir, a que faltou um rasgo de coragem para as inovações e as rupturas fundamentadas que se impunham. Apesar disso, eu quero muito não perder mais tempo com a TLEBS, ou, dito de outro modo, não quero gastar mais cera com tão ruim defunto. Só o farei se a isso me sentir obrigado (sans rancune, pois estará a rodear as reais questões quem pensar em conflitos pessoais).
(...)
Quero de novo acentuar que fiquei com a impressão geral de que a TLEBS tem partes que, após revisão cuidada, são de acolher. Tenho pena de que não sejam todas, porque preferiria poder escrever um texto de elogio ao trabalho dos meus colegas, que passaria a usar e a difundir com muito gosto. Porém, perante o que me foi dado observar, não tenho dúvidas em declarar publicamente, com plena convicção e sentido da responsabilidade que assumo, que, independentemente das partes válidas que a TLEBS contém, o conjunto que abrange a Morfologia, as Classes de Palavras, a Sintaxe, a Semântica Lexical e a Semântica Frásica – que constitui precisamente o cerne do sistema linguístico – apresenta deficiências e lacunas de uma gravidade tal que fazem desta terminologia, tomada na sua globalidade, um objecto que não merece crédito científico, que envergonha a Linguística portuguesa e o próprio país e que não se entende como pode estar a ser introduzido no sistema de ensino. Se alguém tivesse como objectivo contribuir para tornar o ensino do português algo de odioso para os alunos, não poderia ter dado melhor ajuda.

(...)
Texto de 30 páginas, onde o autor faz uma análise do discurso hermético da TLEBS, das falhas e incoerências várias que apresenta e comenta as vozes que a têm defendido e atacado. Sem 'partidarices'.

3 comentários:

IC disse...

Compreendo que não seja fácil erguerem-se vozes autorizadas a pôr em causa o trabalho de colegas, mas, tal como nas nossas escolas também às vezes se impõe, é preciso ter a coragem de pôr a qualidade do ensino e os alunos acima de qualquer espécie de corporativismo. Ainda bem que, no caso da TLEBS, um linguista dá o exemplo.

Obrigada pelas palavras que deixaste no meu cantinho. Beijinho e bom fim de semana.

Amélia disse...

Depois deste texto, será que tudo vai continuar como dantes?

emn disse...

É forte, duro e incisivo... Lá terá as suas razões...

Eu sou extremamente parcial nisto... :) Quem quer que critique a Tlebs é meu amigo. O que ela, a (mal)dita, me fez sofrer o ano passado com as incongruências e os erros! (...e o SILÊNCIO geral que me fez pensar se não estaria maluca?!)