quinta-feira, 1 de dezembro de 2005

Carta aberta


Mais uma transcrição: «Carta Aberta à Exm.ª Sr.ª Ministra da Educação Professora Doutora Maria de Lurdes Rodrigues» de Ana Cristina Marques da Costa.
Sou professora de Educação Física do Ensino Básico (2.º ciclo) há 25 anos. Tive conhecimento, este ano lectivo, que ainda o vou ser mais 19, se a saúde e a motivação mo permitirem. Sou docente do quadro de nomeação definitiva da Escola EB 2,3 José Cardoso Pires, na Amadora. Pelo décimo quarto ano acumulo esta função com tarefas docentes no Ensino Superior Universitário - Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (ULHT).Os meus 25 anos já foram interrompidos por: dois anos de equiparação a bolseira para a realização de um mestrado em Ciências da Educação; dois anos de destacamento no Ministério da Educação a acompanhar a reforma, constituindo, em colaboração com um colega, a Direcção de Serviços de Formação de Professores do departamento a que pertencia; dois anos de destacamento na ULHT como regente de uma disciplina, a orientar estágio e a coordenar um ano da licenciatura que lecciono.Sr.ª Ministra, nenhuma destas três tarefas que acima referi se pode comparar em termos de desgaste intelectual e psicológico à tarefa que desempenho como professora do Ensino Básico. A exigência é semelhante, o desgaste e a energia dispendida não se podem comparar.Sr.ª Ministra, é mais difícil ser professora na escola do que na Universidade, em especial nos tempos que correm, em que, felizmente, estão no Ensino Básico (mas infelizmente não o concluem) quase todos os nossos cidadãos que legalmente o devem frequentar. Os números da frequência de alunos no nosso Ensino Secundário (12.º ano) no contexto mundial são vergonhosos - estamos na cauda (in Correio da Educação, ASA, n.º 63 de 17 Outubro 2005).Sr.ª Ministra, resolvi escrever-lhe esta carta porque, sendo uma das professoras que gosta de ensinar, pela primeira vez na minha vida profissional (na sequência das medidas vertiginosas que tem vindo a enviar para as Escolas) me questionei se terei escolhido a via certa: ser professora.É isto, Sr.ª Ministra: é apenas porque gosto das crianças, gosto da escola e me esforço por acreditar que ela pode melhorar que lhe resolvi escrever.A Escola estava doente, é verdade. Agora sinto-a moribunda.As medidas que tem enviado para os estabelecimentos de ensino são exclusivamente economicistas. Reforçam a ideia de espelho unidireccional do sistema, em que as instâncias superiores do ME espreitam cá para baixo, mas cá de baixo nada se vê para cima. Os professores merecem respeito, muito em especial aqueles que verdadeiramente o são, e a comunicação estabelecida entre os diferentes níveis do Ministério da Educação não tem sido, nem de longe nem de perto, a mais eficaz. A este propósito aconselho a leitura da crónica "A Dignidade e o Respeito"” do Professor Joaquim de Azevedo no Correio da Educação da ASA de 17 de Outubro de 2005. Sim, acredito que havia muitas situações que deveriam ser repostas pelo abuso que se fez, entre outros aspectos, na leitura e análise do Estatuto da Carreira Docente, concretamente no que às reduções da componente lectiva dizia respeito. Sou a primeira a admitir que muito na nossa Escola tem de mudar.Mas e o resto, Sr.ª Ministra?Aponte-me medidas inovadoras, tomadas no seu mandato, que contribuam para a melhoria da eficácia do ensino, para a redução dos níveis de iliteracia da língua portuguesa e da iliteracia científica que apresentamos a nível mundial… Onde estão?Onde estão estratégias de controlo e de verificação da nova concepção pedagógica inerente à reforma do Sistema Educativo: projectos curriculares de turma, desenvolvimento de competências (e não exclusivamente uma escola da memória e da avaliação quase exclusiva de conhecimentos), diferenciação de ensino, transversalidade da Língua Portuguesa…?Onde estão medidas de garantia de uma escola inclusiva? Será que o exemplo da situação actual francesa não nos fazem reflectir no que à Escola diz respeito?Onde estão os mecanismos para avaliar estas importantes inovações fantasma?Sr.ª Ministra, sobre estes assuntos por cumprir há testemunhos valiosissímos que interessa estudar de pessoas que, para nosso azar, já não estão connosco (Professores Paulo Abrantes, Rui Grácio e outros), mas que certamente não estariam contentes com o que se vive.Mais, Sr.ª Ministra, as medidas que têm sido tomadas estão, na minha opinião, a atrasar este processo que teria obrigatoriamente de avançar recorrendo a outras medidas.Mas falemos de outros aspectos. Saiba o que está a acontecer, Sr.ª Ministra: apesar do aumento de carga de permanência na escola, há projectos importantíssimos a cair, professores que faziam sistematicamente experiências no âmbito de disciplinas de Ciências Físico-Naturais que estão a deixar de o fazer (por falta de tempo para as preparar) e os poucos docentes que na escola se envolviam em projectos que ultrapassavam a sua docência e contribuíam para o crescimento e melhoria da escola estão a perder energia e começam a excusar-se de os fazer.A escola parece cada vez mais um jogo da apanhada onde ninguém sabe onde é o coito. (Luís Bom).Saiba, Sr.ª Ministra, que as famosas substituições não têm, na minha opinião, qualquer validade pedagógica. Justifico esta afirmação com os seguintes argumentos:- os alunos estão cada vez mais sobrecarregados em termos de carga horária;- os problemas de insegurança são grandes (em especial nas zonas urbanas e nos subúrbios) pelo que, à grande parte das crianças e jovens, não é dada a liberdade de poder caminhar em paz para as suas casas;- os fins-de-semana são, infelizmente para muitos, solitários e na companhia da televisão e de computadores;- a escola é quase toda sentada e as aulas de substituição também são sentadas;- assim sendo, os tempos de encontro e troca são escassos, restando a poucos alunos essa oportunidade. Ter um período de tempo desocupado permite o encontro entre os jovens, experiências importantíssimas de sociabilização, de jogo, de actividade física e de tratamento de temas que não são tratados junto da família, de professores ou da maioria dos adultos.Saiba a Escola ter uma oferta consistente e válida de actividades de complemento curricular (clubes diversos e um bom projecto de Desporto Escolar…), apoios pedagógicos, Bibliotecas abertas com a presença obrigatória e permanente de um Auxiliar de Acção Educativa e de um docente, Serviços de Psicologia e Orientação Profissional, Tutorias, Animadores e tudo o resto que ajude a escola a ser escola.Sr.ª Ministra, acredite que as aulas de substituição servem pouco a escola e os alunos. Servem apenas para grande desgaste da maioria dos professores que se confronta, desnecessariamente em muitas situações, com grupos desmotivados de cerca de 25 alunos que poderá nunca voltar a encontrar. Este encontro é certamente bem diferente daqueles que o Professor Daniel Sampaio realiza pontual e informalmente há cerca de trinta anos com milhares de jovens desconhecidos em aulas, garagens, pátios de escola, anfiteatros municipais e até igrejas in crónica da revista Xis, Jornal Público).Tenha o Ministério da Educação vontade e disponibilidade política para garantir estas medidas. Para as fiscalizar, a par da avaliação e controlo que já há muito deveria ter sido feito através de um enquadramento legal, da qualidade miserável dos bares das escolas que estão a contribuir para a destruição da saúde das nossa crianças e jovens e para um acréscimo impressionante dos gastos em saúde resultantes das doenças associadas à obesidade (não tão longínquo como à partida pode parecer).As comparações que têm vindo a público na comunicação social são enganadoras, no mínimo viciadas. A Educação Comparada é uma das Ciências da Educação importantes, é verdade. Deve no entanto ser utilizada de forma criteriosa, não recorrendo apenas a variáveis úteis em determinados momentos. Não basta apenas pensar em percentagens de gasto da educação relativamente ao nosso pobre produto interno bruto ou a qualquer outro aspecto descontextualizado. Vamos comparar todas as variáveis.Outro assunto que seriamente me preocupa é um resultante da entrevista que a Sr.ª Ministra deu ao Jornal Público, a 20 de Outubro deste ano. Reportando-se às verbas do PIDDAC e a propósito da melhoria da rede escolar, a Sr.ª Ministra refere Encontrei um PIDDAC que, se não lhe mexesse, tinha todo o dinheiro comprometido nos próximos cinco ou seis anos só para pagar pavilhões gimnodesportivos, mesmo estando a rede escolar num estado que exige intervenção urgente. A minha intervenção foi inverter as prioridades, passá-las dos pavilhões para o espaço da escola.Que estranhas estas prioridades. Fala como se a a saúde das crianças portuguesas não fosse uma prioridade! Esquece-se de que a Organização Mundial de Saúde classifica a obesidade como o flagelo do século XXI e de que é na disciplina de Educação Física que se desenvolve a saúde e se promove um estilo de vida activo. Fala do espaço das escolas como se as instalações cobertas e dignas para a disciplina de Educação Física e para as práticas de Desporto Escolar dele não fizessem parte.Mas e os estádios? Especialmente os esquecidos por cuja construção governos tanto lutaram. Será que daí não estão a resultar individamentos para o nosso Portugal dos Pequenitos? Terá sido isso uma prioridade, Sr.ª Ministra?Esta preocupação agrava-se quando leio o artigo "Professores temem mais privatizações” (in Correio da Manhã, 9 de Novembro de 2005) no qual um adjunto da Sr.ª Ministra refere, a propósito do 1.º ciclo, que: a modalidade de instrução física e motora não assegura um bom desenvolvimento desportivo da criança e desvenda medidas que irá anunciar, que podem incluir a saída da Educação Física do currículo do 1.º ciclo do Ensino Básico. Será necessário esclarecer queo que está em causa não é a instrução física, mas sim a área curricular de “Expressão e Educação Físico-Motora” incluída legalmente no currículo deste ciclo de escolaridade.Tal como a finalidade da Língua Portuguesa, que no actual currículo acompanha a EF do 1.º ao 12.º ano (resultante da reforma iniciada em 1986 e generalizada em 1996), não é formar poetas ou advogados, mas sim desempenhar com correcção as funções da Língua Portuguesa, isto é comunicar, a Educação Física, Sr.ª Ministra, no 1.º ciclo (ou em qualquer outro ciclo de escolaridade) nunca servirá para formar desportistas. Serve para educar as crianças no domínio das actividades físicas, para as tornar mais aptas e saudáveis, para lhes incutir o gosto pela actividade física e para contribuir para a promoção de estilos de vida activos.Parece-me moral e pedagogicamente correcto dar cumprimento à iniciativa do governo da Sr.ª Ministra de iniciar o Inglês no arranque da escolaridade obrigatória.Privatizá-la parece-me moralmente incorrecto. O correcto seria recorrer-se à lista ordenada de professores de Inglês, actualmente não colocados, com formação para iniciar esta língua estrangeira junto das crianças.Privatizar a Educação Física, Sr.ª Ministra? Os nossos colegas do 1.º ciclo têm, no seu currículo de formação inicial, formação para leccionar esta área. As carências que possam sentir devem ser supridas com apoio de especialistas, tal como está contemplado no ponto 1 a) da lei 46/86, Lei de Bases do Sistema Educativo no 1.º ciclo, o ensino é globalizante, da responsabilidade de um professor único, que pode ser coadjuvaado em áreas especializadas.Considero-me uma pessoa com formação nas questões que à Educação e à Escola dizem respeito. Ensino-as na Universidade e é, também, por esta razão que me sinto na obrigação de viver a escola com a regularidade com que o tenho feito.É que vários ensinam o que não conhecem, muitos opinam sem ter vivido e outros legislam sobre o que lhes é exterior.Na minha opinião qualquer Ministra/o da Educação deveria ter ensinado numa escola do Ensino Básico ou Secundário pelo menos dois anos consecutivos, nos últimos cinco anos antes do seu mandato, (especialmente em escolas de zonas de risco), caso contrário têm da escola uma visão ténue, desfocada, pouco nítida. Também cada Ministro deveria rodear-se, isto é, constituir a sua equipa com professores que gostem de o ser e que queiram uma escola tratada e não uma escola doente e em lista de espera.Muito mais haveria que dizer.O que está a acontecer compromete o futuro das crianças e dos jovens. De Portugal.Sr.ª Ministra, veja lá isto porque a minha vida é a escola.A nossa vida é a escola.

2 comentários:

IC disse...

Em dois dias descobri três blogues que não conhecia, um deles foi este. Sabem bem estas descobertas :)

emn disse...

:) já descobri também mais um que vai para os links...